ENTREVISTA || Dinarte Machado – Organeiro responsável pela intervenção nos órgãos da Basílica de Mafra (2ª parte)
Já sondou os políticos locais relativamente a esse projeto? [fala-se da criação de uma escola de organeria em Mafra] Sim, nomeadamente o senhor presidente, que tem essa preocupação, embora referindo sempre que existe um escalonamento. O problema é que eu tenho 60 anos, e formar um organeiro, no mínimo, não demora menos de 6 anos.
O conjunto dos 6 órgãos da basílica de Mafra é único, como único foi também o seu restauro e a sua manutenção. Neste caso, o que se mostra necessário é formar uma ou duas pessoas que entendam este conjunto até onde já se sabe, para no dia em que eu morra, não ter de se partir do zero.
Já sensibilizou também os Ministérios da Cultura e da Educação?
Essas sensibilizações já foram repetidamente feitas. No entanto, levanta-se aqui um problema, aqueles que vierem aprender comigo necessitarão depois de um diploma. Ora, para que eu possa passar esse diploma, e para que ele tenha valor legal, tenho de ter uma acreditação do estado. Há anos que procuro essa acreditação, entretanto, informaram-me há pouco tempo, que o processo avançou finalmente, depois de ter ficado na gaveta durante largos anos.
Quando Gabriela Canavilhas era ministra e decidiu tirar o documento da gaveta, optou por só dar acreditação a quem já tivesse uma licenciatura, não sendo suficiente ter largos anos de trabalho bem-sucedido na área, bloqueando assim um processo que não era revisto desde os anos 80.
Como é que está esse processo atualmente?
Saiu recentemente das mãos da senhora ministra e estará sob consulta na DGPC (Direção Geral do Património Cultural).
Manifestou recentemente, numa rede social, algum desagrado por opiniões “menos interessantes” surgidas a propósito da revisão dos 6 órgãos da basílica de Mafra, a que é que se referia em concreto?
A culpa não passa pelas pessoas que se manifestaram, de fato, não passa. Eu reagi porque uma das pessoas que se manifestou é um responsável político. A própria Diretora Geral da DGPC manifestou uma opinião muito desagradável, dando a entender que eu, com a pressão que estava a fazer no sentido de que se procedesse à revisão aos órgãos, estaria a chantagear a DGPC, e que ela não se deixava mover dessa forma. Como se eu estivesse aqui a defender uma coisa para mim próprio. Na realidade, a decisão para esta revisão resultou, efetivamente, da posição firme do presidente da câmara de Mafra e por isso, a câmara municipal assumiu esta parte.
Esta posição do presidente da câmara terá criado, possivelmente, um certo desagrado na DGPC, tendo sido alguém que, penso eu, com responsabilidades atuais na área do património, pôs em causa as justificações desta intervenção, nomeadamente, por já ter ocorrido uma intervenção anterior, há poucos anos.
Que comentários é que essa observação lhe sugere?
O que penso, é o que escrevi nas redes sociais. Na primeira intervenção, por imposição do IPAR (instituição que antecedeu a DGPC), os órgãos foram intervencionados gradualmente, os 5 órgãos não foram apeados e restaurados da mesma forma, existiram diferentes momentos de intervenção e de afinação, não se tendo, então, disposto do tempo necessário para se fazer a afinação conjunta dos 6 órgãos.
Deixe-me sublinhar isto, nem eu nem ninguém no mundo, sabe qual será o resultado final do trabalho em 6 órgãos, nomeadamente, quando eles são chamados a tocar em conjunto, embora todos eles, individualmente, tenham ficado impecáveis. Foi esta a minha preocupação, e aí sim, foi nesta perspectiva que fiz pressão, ou seja, no sentido de fazer rapidamente essa revisão.
Cheguei a recusar-me a afinar os instrumentos para os concertos. A questão não passava pelo fato de a minha imagem poder ser afetada, mas sim, pela a imagem do meu país, uma vez que vem gente de vários pontos do mundo para ouvir aqui um concerto a 6 órgãos.
Entretanto, a pessoa que fez o comentário nas redes sociais, já me respondeu, pedindo desculpa e reconhecendo que esta última revisão tinha, efetivamente, de ser feita.
Quando, na mesma intervenção nas redes sociais, afirma, relativamente às cerimónias de inauguração, que estas devem acontecer “sem que fique seja quem for do elenco político, por convidar, porque senão, cai o Carmo e a Trindade”, quer contar-nos a história que está aqui subjacente?
Não se trata de uma história, mas sim de um conjunto de histórias.
Quando começamos a restaurar um órgão histórico, nunca sabemos quando vamos terminar. Imaginemos um concurso público para restaurar um instrumento. Muitas das propostas de cadernos de encargos parecem ter sido tiradas de uma qualquer casa de banho, por vezes, até vêm com os mesmos dizeres. Trata-se, pois, de um longo procedimento que envolve várias pessoas, aquilo é uma festa… Depois sai o concurso público numa plataforma, e temos de pagar, temos de utilizar um palavreado específico, uma coisa imensa, tudo muito bonito, mas que nada tem a ver com o que é verdadeiramente o restauro de um instrumento. Burocracia e tecnocracia, que só serve mesmo para dificultar as coisas.
Depois vem a avaliação das propostas, outro momento que parece vir lá dos gregos, uma grande tragédia. Segue-se a adjudicação, onde já nos perguntam: “ouve lá, quando é que podemos começar a pensar na inauguração? Que eu quero fazer uma grande festa”. E aqui começa a pressão. A meio dos trabalhos, chamam-se os jornalistas, faz-se uma conferência de imprensa…
Em contrapartida, isto que o senhor está aqui a fazer na minha oficina (referindo-se à presente entrevista), a televisão portuguesa nunca o fez. Foram ter comigo a vários trabalhos, em reportagem… Mas aqui nunca ninguém veio.
Mas isso só acontece consigo?
Não, acontece com todos, também com os meus outros dois colegas. Quando digo dois colegas, aproveito para referir que andam por aí alguns “patos bravos”, sem qualquer tipo de formação específica, que por terem trabalhado meia dúzia de meses, ou nem isso, com A, B ou C, já se acham organeiros.
Voltando aos concursos públicos, chegamos ao final e vem a inauguração, propriamente dita. É quando nós sentimos uma separação total, quando nos sentimos completamente fora do contexto. O organeiro está lá a afinar, é melhor não ir incomoda-lo, “porque o Dinarte é uma besta”, que de repente levanta a voz, como de resto, já aconteceu várias vezes, não é mentira nenhuma. Não digo que seja “uma besta”, mas sou uma pessoa que defende as suas opiniões.
Há também os convidados, e os que não foram convidados e lá “cai o Carmo e a Trindade”.
Terminada a inauguração, cria-se uma espécie de “temporada do órgão” para por os instrumentos a funcionar, e isso faz já parte da conservação. Quinze dias depois da inauguração, o organeiro exprime, junto da entidade proprietária, a necessidade de fazer a manutenção periódica do instrumento, e a resposta que se obtém é exatamente aquela que escrevi na referida rede social, “mas eu nunca tinha pensado nisso”, “mas nunca ninguém me falou disso”, “nem sei se tenho dinheiro para isso”.
E em relação aos órgãos da basílica de Mafra, vai ou não haver manutenções periódicas?
Mafra foi o princípio de um bom exemplo. Conhece-se a vontade expressa do senhor presidente da câmara, no sentido de assegurar a manutenção dos órgãos em resultado de conversações mantidas com a tutela. Asseguraremos a sua manutenção, a partir de novembro, e durante os próximos 5 anos, procedendo-se depois a uma reavaliação.
Há tempos, também numa rede social, apareceram imagens relativas a uma intervenção na basílica, efetuada num trono eucarístico do século XVIII, intervenção feita a pedido da irmandade, imagens essas onde se viam pessoas de pé em cima do trono de madeira do século XVIII, como é que avalia esta situação?
Em relação a este caso, gostava de dizer uma coisa muito simples. Aqui em Mafra, que poder é que a Irmandade tem para adjudicar de forma direta, a um determinado indivíduo, que é sempre o mesmo, o restauro de uma determinada peça? Foi uma intervenção feita à sua forma, a forma como entende, dizendo estar acima de todos, “eu sei mais que todos” e depois descreve a intervenção que fez, ora isto é um erro. Resume de algum modo o medo que sinto, o medo que acabe por se passar à geração seguinte, aquilo que é errado fazer.
Sabemos que a Irmandade tem património ao seu cuidado, e todos sabemos historicamente por que é que está ao seu cuidado, mas a Irmandade tem a responsabilidade de dizer que determinada intervenção foi feita por alguém, mas que essa intervenção se baseou em várias opiniões. Não foi sequer perguntado a outras empresas quanto é que a intervenção podia custar.
Sabe de quem é a propriedade do trono eucarístico do sec. XVIII?
A propriedade é do palácio, mas há um aspeto histórico a ter em conta. Houve uma época em Portugal, em que se não houvessem irmandades, misericórdias ou confrarias, estas peças tinham sido queimadas. Por essa razão, estas irmandades recolheram algum deste património, no caso da Irmandade de Mafra, a maior parte das peças têm caráter religioso.
O caso de Mafra é talvez único no país, o espaço da basílica é património do estado, estando à guarda da igreja para que ali se celebrem ofícios religiosos.
Do ponto de vista da consciência do património, a Irmandade guarda peças que são muito valiosas e que estão ligadas à história deste monumento. Uma peça não deixa de ser património de nós todos, só porque está à guarda da Irmandade.
Por outro lado, em relação à triste imagem que foi publicada nas redes sociais, relativa ao restauro do trono, parece nem se tratar de uma peça de património, mais parecendo tratar-se de uma escadaria. Foi essa a imagem que ficou para o público, que aquilo era uma escadaria, onde se anda com os pés, por onde se sobe e desce. Mas não é isso, na realidade trata-se do Trono do Santíssimo.
Por outro lado, como já referi, tenho a certeza de que se não fosse a Irmandade a conservar determinadas peças, elas já não existiriam. Não seria a DGPC, o antigo IPAR, nem o IPPC (Instituto Português do Património Cultural), nem os Monumentos Nacionais a mantê-las, e já teriam desaparecido.
Não faz sentido é que, por um lado se tenha de recorrer à consulta pública e que, dentro do mesmo edifício se adjudique sem que essa consulta seja obrigatória. Para além disso, não devíamos ter surpresas, que é o que tem acontecido quando, de repente, alguém da Irmandade diz, “tenho este documento”, documento de que ninguém tinha conhecimento. Isto não pode acontecer, os documentos da Irmandade são documentos públicos, esses documentos não podem ser conservados à mercê e à guarda seja de quem for, porque a Irmandade do Santíssimo Sacramento de Mafra não se pode, ou não se deveria comportar como uma entidade privada.
Mas não quero aqui criticar a Irmandade, quero sim, associar-me a si na crítica que fez à apresentação de uma peça, numa forma que integraria mais numa escadaria ou um palco do que um trono eucarístico.
Qual foi o trabalho mais exigente que fez e qual aquele que lhe deu mais prazer?
O mais exigente sob o ponto de vista da sua dimensão, foram seguramente os órgãos da Basílica do Palácio Nacional de Mafra.
O mais exigente sob o ponto de vista técnico foi um pequeno instrumento que restaurámos para a Ilha da Madeira, trata-se do órgão da Igreja Matriz de Machico, bem como, um órgão que temos atualmente entre mãos, o órgão de procissão da Sé Catedral do Porto.
Que trabalhos tem em mãos e o que é, que lhe falta fazer para se sentir plenamente realizado profissionalmente?
Entre mãos temos, em termos de restauro, o órgão de Santa Catarina, em Lisboa e o órgão do Convento do Carmo, em Tavira, cujos trabalhos a crise veio interromper, mas que foi agora possível retomar. O órgão histórico do Palácio Nacional de Queluz, o órgão de processão da Sé do Porto e o órgão da Matriz de Famalicão.
Quanto à construção de órgãos novos, temos dois pequenos instrumentos que estamos a acabar.
Relativamente ao que me falta fazer no plano profissional, destacaria a necessidade de dispor de tempo para transmitir o que sei e a experiência que acumulei, a uma entidade que se disponha a publicar essa informação, ou seja, o conhecimento acumulado a partir dos órgãos que restaurei ao longo de todos estes anos, até agora, 85 instrumentos.
Há um segundo aspeto, que gostaria de ver realizado rapidamente, sendo aquele que mais me preocupa. Gostaria de deixar duas ou três pessoas do meu país, formadas, dando a estes jovens as oportunidades que eu não tive, as oportunidades que eu tive de criar. Hoje, os jovens que vierem trabalhar comigo, têm tudo aqui, está tudo aqui. E, claro está, gostaria que nessa tarefa, o estado estivesse ao meu lado e não contra mim, uma vez que é absolutamente necessário fazer essa formação.
Em adenda, gostaria de ver esclarecidas as seguintes questões (e penso que outros leitores e munícipes também gostariam), questões essas formuladas a partir de dizeres do próprio Sr. Dinarte nesta entrevista: qual a razão dos restauros e intervenções dos órgãos serem sempre adjudicados ao Sr. Dinarte, que é sempre o mesmo? Foi essa intervenção feita à sua forma, à forma como entende? Essas várias intervenções basearam-se em várias opiniões? Quais e de quem? Que organismos foram consultados? Que pareceres foram emitidos? Foi perguntado a outras empresas quanto essas intervenções podiam custar, nomeadamente neste último ajuste com a Câmara Municipal de Mafra? E no caso do órgão que lhe foi comprado pela Câmara e instalado na igreja de Santo André para servir os alunos de música? Foram solicitados preços a outras empresas? Foram pedidos pareceres, tendo em conta que aquele espaço é monumento nacional classificado? A quem?
Concordo com alguns aspectos referidos pelo Sr. nesta entrevista. No entanto, não posso deixar de referir que acho o discurso muito contraditório. Na primeira parte o Sr. Dinarte refere que não trabalha com concurso públicos. Diz mesmo que os concursos públicos são “a coisa mais perigosa para a conservação e restauro”. Critica, portanto, a política do concurso público. Depois, na segunda parte da entrevista, vem criticar a irmandade por, supostamente, ter feito um “ajuste directo” com um técnico de restauro, sem que tenha perguntado a outras empresas quanto podia custar essa intervenção. Ora, em que ficamos? Se assim fosse, não deveria então a Câmara Municipal de Mafra “ter perguntado a outras empresas”, que não a do Sr. Dinarte (que as há em toda a Europa), quanto podia custar o contrato de manutenção dos órgãos que foi firmado entre ambos e que envolve dinheiros públicos? Ou seja, o Sr. Dinarte parece defender o ajuste directo à empresa de que é proprietário, porque o concurso público é perigoso, mas defende o concurso público em tudo o que não o envolva a ele ou à empresa dele. É isso?